O dia começa e é assim: o despertador toca e já são cinco
horas, o café já está pronto na mesa, acende-se o cigarro, o dia começa a clarear,
a cidade a acordar silenciosamente, tudo é morto.
A vista da sacada é imóvel e inquieto-me. A fumaça do
cigarro se esvai e o café esfria. Tanto faz. Isso que dá conceder tamanha
liberdade a si mesmo, uma hora não se sabe o que fazer com ela e enlouquece.
Também me coloquei na liberdade de não fazer nada o dia
inteiro, não pus sequer um trapo velho comumente usado quando não pretendo ver
alguém. E realmente não pretendo: minhas filhas estão felizes em qualquer outro
lugar que não aqui, minha mulher se foi e tive o erro de dispensar a empregada
por hoje – sim, eu o fiz porque quero saborear esse momento de puríssima
solidão, momento calmo e silencioso. Sento-me numa cadeira da sacada e a brisa
então me arrepia o corpo. Coloco o rádio do lado e abro o jornal.
Essa solidão dada de mim para mim foi de pura
inutilidade: enjoei tão rápido que teria sido melhor não ter dispensado a
mulher. Essa monotonia está começando a me irritar e apenas eu, meu salvador,
posso fazer algo mas não faço.
Não! há uma ideia para quebrar de uma vez a minha
liberdade e logo me prendo aos números: começo a contar até dez inúmeras vezes
e assim evito de pensar. Pensar... pensar no que? Não tenho no que pensar,
minha rotina acaba de ser quebrada e fui jogado ao precipício, tão fundo e
escuro era que agora não sei o momento certo de minha morte, não sei o que
esperar da minha vida nos próximos minutos, continuo caindo, caindo,
caindo................
Antes que se pergunte do que isso se trata, já digo
antecipadamente: nada. Sim. Escrevo sem escrúpulos um texto tão tolo que começo
a bocejar: percebo agora minha inaptidão em relação a nada. Escrevo de mim para
mim e quem tiver a coragem e a paciência de lê-lo, que o faça, não obrigo nada
de ninguém. E faço isso antes que me venha a mente a ideia de fazer qualquer
coisa que não deixe marcas minhas aqui no mundo.
Vi hoje um monstro – não, não se assustem!, por favor, a
história também é um pouco ambígua, esqueci-me de dizer, mas não deixa de ser
real, e antes que minha história fictícia-real torne-se logo um texto malfeito
quase pronto, peço-vos que transcendam qualquer medo de infância e mergulhem em
indagação, e peço minhas desculpas se o que redijo vos molestais.
Eu - eu que, por medo da loucura, por medo do grande
prazer da vida sucedido após muito sofrimento, e medo desse mesmo sofrimento,
refugiei-me ao mais obscuro de mim, joguei-me no meu próprio precipício sem fim
e me permiti viver ao modo mais monótono possível. É tudo escuro, sim, mas há
um fim, eu sei disso, sinto que o fim aproximar-se-á, e quando chegar, ah!
saberei o que o futuro me aguarda. Futuro? Como haver futuro após o fim? E que
fim? Sim, fim, pois tudo que começa termina, assim como o mundo começou, este
há de acabar um dia e assim o meu corpo, corpo concebido não sei por qual
motivo evidente. O que esperar dos minutos vindouros? O que esperar quando o
derradeiro dia chegar, o Grande Dia, o que farei de mim? Irei chorar?
Quando jovem costumava escrever alguns contos, mas na
hora desisti: não servia para aquilo e constatei isso por dois motivos: primeiro,
eu tinha vergonha daquilo que escrevia e na mesma hora rasgava as folhas sem o
menor pudor. E segundo que criava meus personagens e eles logo se pegavam uma
parte de mim, parte tão oculta que tornava-se quase uma autobiografia, tudo o
que escrevia era eu em palavras, e não queria que ninguém soubesse quem eu
sou...
...sinto que – sinto que irá chover. As cortinas oscilam
os sinos da janela tilintam e o vento assalta a casa de modo que estremeço. A
sala escurece. Ascendo a luz e... o quarto. A janela do quarto está aberta.
Chego ao quarto e corro para a janela. Respingos d’água
caem na minha testa, o vento bate forte e lanço-me na vida como lanço-me agora aos braços de você que estiver me lendo.
Concedo a você essa liberdade de me deixar cair no gélido chão úmido, tanto
faz. Sinto que estou vendendo minha vida a preço injusto. Essa falta de
escrúpulos é pungente e começa a me assustar. Você que me carregar nos braços
terá então o dever de viver por mim, não sei mais como o fazer.
Começo a me decepcionar com isso que escrevo. Acho que é
mais um lamento que uma história. O silêncio logo torna-se um grito. Ou pior:
um silêncio angustiante. Disso extraio minha descoberta: eu, que desisti de ser
submisso da vida, agora descubro-me. A morte de um ser se resume a isso:
descobrir-se. Como viver num mundo decifrável e lógico? Encontrei há pouco
minha morte. A morte era a minha descoberta. Lê-se agora um conto de um
defunto. Dispensem as flores, por favor. Mas já de agora ouço a música fúnebre,
uma nota a cada segundo, desvanecendo-se para dar lugar à outra.
A música é silenciosa e assim sou eu no momento: todo
silencioso. Tento não pensar porque é no pensamento do silêncio que se descobre
as coisas. Penso no que? No branco? Pensar no branco de certa forma é pensar em
alguma coisa. Só de pensar no não pensar é que estou pensando. A chuva é fraca
demais para quebrar o silêncio. Fecho a janela e ando de um lado pro outro.
Vou
ao banheiro e me deparo com um monstro que outrora havia citado. O monstro
finalmente é flagrado e ele freme de susto. Avanço e o olho mais de perto,
ambos estamos com os olhos cansados, pedindo bênção, pedindo salvação. A
respiração é abafada e a luz é fraca, pisca três vezes. Ele sua frio e não sabe
também o que fazer. Rezo silenciosamente para que ele não me devore mas o medo
já o fez por ele, e com os olhos semi cerrados, aproximo-me, olho mais de perto
e percebo, finalmente: o monstro... o monstro sou eu.
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