O dia é cândido e álacre lá
fora, o primeiro depois de uma temporada de dias barulhentos devido à chuva e
noites aterradoras.
A menina acorda feliz, acorda sem medo. Muitas noites
acordava pávida e seus sonhos logo eram preenchidos de terror e desgraça.
Assustava-se com o barulho dos trovões, às vezes ousava encolher-se nos cantos
da cama dos pais (apenas o fazia quando era incontrolável o medo, não queria
incomodá-los) e o aconchego da cama deles lhe garantia total segurança naquelas
noites.
Abre a janela e banha-se com o sol antes discreto e
tímido, agora invulnerável, banha-se com a felicidade, com a vida. Os pássaros
cantam nas árvores ainda úmidas como a convidarem todos a cantar uma prolongada
música indefinida, as crianças brincam no parque como se a vida não pudesse
melhorar. O dia é cândido e álacre lá fora.
Vai à cozinha com o pijama cor-de-rosa e as pantufas que aquecem
os pés nus. Acostuma-se ao movimento matinal, o cheiro do café da manhã, os
olhos ainda demoravam-se a abrir, achavam que ainda era sonho.
A prova que constatara que aquilo era real era que... na
verdade, nada constatara. Bem que podia ser um sonho mesmo. Achava tudo aquilo
tão irreal que até sorriu.
Recentemente a menina havia conhecido uma amiga, de nome
Bárbara, enquanto brincava com suas bonecas.
- Está muito moça para ter amigos imaginários, dizia a
mãe.
Encolhia-se. Não escondia em seu rosto jovial o ar de
desapontamento. Era certo que os pais estranhavam ela de ter amigos
imaginários, mas o que estes possivelmente diriam das pessoas reais? É porque a
menina achava que a realidade não existia.
Eu:
Não te entendo.
Menina:
Somos dois então.
Eu:
Se a realidade não existe, o que sou eu?
Menina:
Você? Não sei. Você é o narrador e me criou. Já eu sou a realidade.
Eu:
Ainda não entendi o que é a realidade.
Menina:
A realidade é indefinível, a realidade é nada, é tudo. Quem garante que o
imaginário não é a realidade e a realidade parte daquilo do que para você, ser
não real, não existe?
Eu:
De onde você tira essas coisas malucas? Nada entendo daquilo que você fala.
Menina:
Não falo, penso. E você que me criou, devia me entender, presumo. Aliás, acho
que estou chegando a uma conclusão quase que plausível: minha vida é uma vida
dentro da sua, a única diferença é que eu sou você realmente, e você é apenas
uma ilusão.
Eu:
Você é muito nova para pensar nessas coisas. Acho você louca.
Menina:
Agradeço ao senhor por me fazer imperfeita. Quanto a esse negócio de idade,
acho tolice: mamãe disse que sou muito velha para amigos imaginários, então não
entendo mais nada.
Eu:
Voltemos à história, antes que você enlouqueça a todos.
Redijo
tal conversa para que entendam o motivo que levou os pais da menina a lhe darem
tal presente. Presente? Sim, havia esquecido: era aniversário.
Aniversário que era de diversas vezes comemorado com um
bolo e um singelo presente qualquer: desde sempre havia se contentado com tudo
e dela emergia felicidade espontânea quase que contagiosa.
E era dessa felicidade momentânea que ela deliciava-se ao
correr dos segundos. Logo após receber os parabéns, olhou para a mesa e de lá
pecaminosamente veio a tentação. Seus olhos devoravam em puro devaneio quando
de repente o presente foi estendido em sua frente. Dessa vez achou que se
tratava de um presente insólito. O que concluo é que nada passou de rápida e
passageira curiosidade. O presente, envolto em fino tecido branco, parecia-lhe
ousado como as cortinas de um teatro que se espera ansiosamente por se
abrir.
Impetuosamente, tira bruscamente o tecido, e revela-se
então uma gaiola branca e dentro dela, um pássaro.
Trata-se de um pássaro pequeno, vadio e infeliz, cuja
tristeza fora encoberta devido à beleza de sua prisão perpétua, uma rosa a
ficar presa nela com um cartão de parabéns.
Após agradecer aos pais, decide levar a pesada gaiola ao
quintal e lá se senta ainda de pijama. O sol bate em seu rosto mas não se
importa, ainda sente a vida bater em seu corpo com a mesma intensidade, nada
era melhor.
Estuda um pouco o espaço silenciosamente. Os pássaros
continuam com suas melodias, as crianças com suas brincadeiras, e ela a ficar
sentada olhando para o nada.
Chega até a ser legal. Tinha gosto de sentir nada. Dentro
dela um vazio inexplicável e nada fazia, nada falava. Encara às vezes o
pássaro. Nada ele fazia também.
Olha para o lado e estremece: Bárbara ao seu lado olhando
para o mesmo nada. De repente ambas se olham. O silêncio é grande e angustiante,
mas é bom. A menina odiava falar porque para fazê-lo era necessário pensar e
pensar cansava. Preferia o silêncio monótono das coisas. O dia é bonito e
quente e seus olhos gozam de prazer. O resto do corpo é frio e morto.
Bárbara está inquieta mas nada diz. Percebe sua
respiração abafada e nada diz também. Bárbara inclina a cabeça e analisa o
pássaro vadio. É tão triste que a manhã chega a escurecer também. Não piava,
não cantava, apenas servia de exposição. Era difícil respirar e viver. Que
alguém o mate, por favor, antes que o sofrimento seja colossal.
Pela graça de Deus nenhuma delas tinha o mesmo pensamento
que eu. A menina demora a entender, mas olha para o pássaro também. Olham-se
novamente. Silêncio. Pássaro. Olhar. Silêncio. Pássaro.
O silêncio é vibrante e o mundo começa a gritar. É
ensurdecedor e ambas começam a tremer de angústia. Bárbara implora qualquer
coisa que a menina não entende. Quebraria o silêncio e então Bárbara poderia
dizer o que tanto gostaria, mas era difícil e tudo cansava.
Bárbara é obediente e não ousa passar por qualquer
barreira que a leve ao mundo real antes da permissão de seu intermédio
real-imaginário, que seria a menina. Suplica por qualquer palavra mas não sabe
de onde tirar. É difícil pensar.
É difícil e tem vontade de chorar, mas não o faz.
É a hora da verdade e a verdade exige grande silêncio de
meditação. A verdade é dita pelo pássaro mas este não diz nada. A verdade é
expressa por telepatia ou qualquer outra coisa que não consigo raciocinar no
momento. O tempo é meio pau-sa-do e quando se vê o cenário é assim: a menina
olhando o pássaro, o pássaro, que há pouco ousara levantar sua cabeça imunda,
erguendo seus olhos miúdos e temerosos para a menina. Bárbara é uma estátua
imaginária colorida e nada diz nada sente nada faz.
A menina hesita, encara Bárbara, que a ignora, queria
acabar logo com aquilo, estava agonizando-a.
Foi quando, escrupulosamente, abre-se a portinha da
gaiola. O pássaro tem medo e se contorce um pouco. Olha a menina e ela o pega
pela barriga e o joga para longe.
Ele não entende. Está confuso, está no ar batendo as asas
para não cair. Sim, tem medo mas voa. Nunca aprendera a voar mas voava. Tinha
medo dessa liberdade dada gratuitamente da menina, tinha medo de viver porque
nunca vivera antes e achava perigoso: desde sempre havia achado a gaiola o
lugar seguro para os pássaros. Mas não tinha escolha agora. Voava para qualquer
lugar e sentia o ar, sentia a vida, que logo percorria por todo o seu corpo
magricelo e imundo, sentia-se vivo e feliz. Sentia um pouco de frio porque
anoitecia, mas pouco se importava também. Às vezes aventurava-se voando de
quando em vez com os olhos cerrados, aproveitar um pouco mais aquele momento.
Pássaros não riem mas ele estava rindo e sorria de uma forma que tornava o
mundo inteiro feliz. Uma vez até piou de tamanha felicidade. Era bom viver.
A menina é chamada pela mãe. Daqui a pouco anoitece. Não
tinha desculpa alguma para o “desaparecimento” do pássaro. Olha para o lado mas
Bárbara não está lá. Levanta-se, pega a gaiola e entra em casa.
Chega uma hora em que nada é mais que um devaneio e a
realidade chega a ficar em segundo plano. Não sabia nada mas vivia, até estava
gostando dessa ignorância pura, e era bom.
A cantar, a rodopiar, a rir, a piar, a cantarolar, a
dançar, a viver, a... BUM. BUM. O barulho é baixo mas o silêncio após é tão
alto que chega a doer os ouvidos. Ele cai nas folhas amareladas e os olhos
estão arregalados. É quando percebe-se que duas crianças brincavam com
estilingue e um deles o acertou na cabeça. Percebem, veem o animal morto, e
saem correndo. O pássaro caiu e agora o silêncio é tão grande que parece que já
estamos no funeral. Sua respiração é abafada mas o silêncio grita e o
interrompe. Está tonto. Sente o cheiro de terra úmida e sorri. Ao redor,
ninguém vê nada. É um pássaro magro, fraco, vadio, quem repararia? Os olhos vão
se cerrando. Ainda não escureceu. O crepúsculo se aproxima.
Ele sorri pela última vez. Morre feliz.
O dia é cândido e álacre lá fora.
Parabéns meu Vitor <3
ResponderExcluirEu sei que parece guei (haha) mas gostaria que voce soubesse o quanto o me orgulho de ter uma pessoa como voce do meu lado! Um verdadeiro machadinho hahaha continue assim porque a sua caminhada é doce e longa!
Sim, um dos melhores escritores que eu já vi (e talvez o melhor daqui)
Eternamente sua Admiradora Secreta (você sabe quem é)
Nem sei qu'é a Barbaranga hahaha <3 tchamo
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