-Acho que precisamos conversar.
-Sobre o que? Sobre como sou orgulhosa, medrosa e infantil? Não se dê ao trabalho, muitos outros já fizeram isso por você. Aqueles outros que, sabe-se lá porque, entraram numa coisa que era minha e sua e tomaram nossas dores. Aqueles outros que multiplicaram sei lá quantas vezes nossa dor. Pode deixar, eles já fizeram sua parte, a minha, a da consciência, a da inconseqüência...pensaram e agiram por nós, fizeram o que temíamos. Sentiram por nós.
-Caramba! Eu só disse que precisávamos conversar, e você já foi soltando tudo desse jeito? Bobona. Tenho cada vez mais certeza do quão frágil você é à minha presença. É só eu chegar perto e...puf! Você abre essa boca, esse coração e não os fecha mais. Eu mando em tudo isso ai.
-Cala essa boca.
-Eu te amo.
-Jura?! Obrigada por confirmar, eu estava com medo que as confissões, declarações e momentos que passamos juntos nesses dez anos não passassem de uma mentira. Tava com medo que as centenas de vezes que me disse isso fossem da boca pra fora. Ufa! Tirou um peso dos meus ombros! Obrigado por me aliviar, seu fofo.
-Amo seu sarcasmo, também. Amo tudo em você.
-Olha aqui, é sobre isso que você quer conversar mesmo? Já não te disse que seu trabalho está feito, por você e por muitos outros? Eu já sei que me ama! Entendi o quanto sente minha falta! Mas já que quer discutir mais uma vez tudo o que já foi ingerido, mastigado e vomitado, vamos lá. To sem o que fazer mesmo. Pode começar agora a parte em que me diz o quanto mudou.
-Por favor, para com isso. Até quando vai viver com essa merda de orgulho ai dentro, hein? Quando vai entender que a cada dia, a cada conversa que temos e você sai distribuindo grosseria e ignorância, o orgulho vai deixando seu coração mais sujo, apertado e gelado? Por que não consegue me ouvir e considerar minhas palavras, entendê-las ao invés de pensar em uma resposta pra tudo? Você se acha invencível, não é? E odeia que eu esteja por perto porque sou o único que consegue te convencer o contrário. Te lembro o quão fraca e sensível pode ser. O quanto pode amar.
-Você falou sobre meu coração, né? Que feio! Um homem grande como você, ainda acreditando nessa metáfora boba? Disse que me lembra de certas coisas. Vou te lembrar de uma também: coração é um órgão que serve única e exclusivamente pra bombear nosso sangue e fazer a coisa toda funcionar. Você sabe muito bem disso, afinal o seu anda com problemas e tem coisa funcionando errado ai. Só não digo que essas besteiras que fala são conseqüência da sua doença porque também é cientificamente errado. Essas porcarias tão saindo do seu cérebro. Esse cérebro genial, que serve pra decorar nome de bebida, cantada barata pra conseguir sexo fácil e sua frase preferida, “eu te amo”. Parabéns, tá fazendo um ótimo uso da única coisa que ainda funciona direito em você! Lindo.
-Quer falar sobre minha doença, agora? Sobre eu estar morrendo e poder não estar aqui amanhã ou depois, quando você finalmente perceber o que o medo acabou fazendo contigo? Quanta coisa o medo te fez perder?
-Até quando vai usar isso pra me fazer chorar?
-Até que essas lágrimas cheguem ao seu coração, reguem esse jardim morto ai dentro e façam tudo colorido e claro novamente.
-Pare de ser piegas! Cadê suas frases sujas, agora? Cadê você me chamando pra sua cama?
-Você mesma disse que essas coisas saem da minha cabeça, menina. Sabe que eu não penso só da cintura pra baixo.
-Podemos encerrar isso? Desculpa, mas me deixei levar mais uma vez e agora não sei o que estamos fazendo e pra onde estamos indo, pra variar. Tudo isso já foi dito e repetido, e aonde chegamos? Que tal acreditarmos que estamos no fundo do poço, pra que possamos desistir? Aliás, pra mim o fim já chegou e se instalou. Não sei por que ainda pensa nisso.
-A quem está tentando enganar, sua boba? Eu e você sabemos que pensa nisso tanto quanto eu.
-Que seja. Estou tentando não pensar, e você não deixa. Será que eu não posso ter mais de dois meses de paz interna? Ninguém deixa! Você, os outros! A merda do coração! A merda do cérebro!
-Viu? Assumiu.
-Sim. Feliz agora? Porque eu não estou. A dor voltou, e lá vou eu pra guerra, mais uma vez. Você ainda conta? Porque eu já desisti. Foram tantas vezes que batalhamos a favor e contra isso, que olha, os números saíram do meu controle...
-Sim, eu ainda conto. Conto porque quero ter o numero exato, o mais surpreendente e impressionante possível, pra que possamos compartilhar com nossos filhos e mostrar pra eles como vale a pena lutar pelo que se ama.
-Merda. Me beija logo, idiota.
Que texto lindo Alice! *-*
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