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quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O Canto Derradeiro

                                  


O dia é cândido e álacre lá fora, o primeiro depois de uma temporada de dias barulhentos devido à chuva e noites aterradoras.
            A menina acorda feliz, acorda sem medo. Muitas noites acordava pávida e seus sonhos logo eram preenchidos de terror e desgraça. Assustava-se com o barulho dos trovões, às vezes ousava encolher-se nos cantos da cama dos pais (apenas o fazia quando era incontrolável o medo, não queria incomodá-los) e o aconchego da cama deles lhe garantia total segurança naquelas noites.
            Abre a janela e banha-se com o sol antes discreto e tímido, agora invulnerável, banha-se com a felicidade, com a vida. Os pássaros cantam nas árvores ainda úmidas como a convidarem todos a cantar uma prolongada música indefinida, as crianças brincam no parque como se a vida não pudesse melhorar. O dia é cândido e álacre lá fora.
            Vai à cozinha com o pijama cor-de-rosa e as pantufas que aquecem os pés nus. Acostuma-se ao movimento matinal, o cheiro do café da manhã, os olhos ainda demoravam-se a abrir, achavam que ainda era sonho.
            A prova que constatara que aquilo era real era que... na verdade, nada constatara. Bem que podia ser um sonho mesmo. Achava tudo aquilo tão irreal que até sorriu.
            Recentemente a menina havia conhecido uma amiga, de nome Bárbara, enquanto brincava com suas bonecas.
            - Está muito moça para ter amigos imaginários, dizia a mãe.
            Encolhia-se. Não escondia em seu rosto jovial o ar de desapontamento. Era certo que os pais estranhavam ela de ter amigos imaginários, mas o que estes possivelmente diriam das pessoas reais? É porque a menina achava que a realidade não existia.
Eu: Não te entendo.
Menina: Somos dois então.
Eu: Se a realidade não existe, o que sou eu?
Menina: Você? Não sei. Você é o narrador e me criou. Já eu sou a realidade.
Eu: Ainda não entendi o que é a realidade.
Menina: A realidade é indefinível, a realidade é nada, é tudo. Quem garante que o imaginário não é a realidade e a realidade parte daquilo do que para você, ser não real, não existe?
Eu: De onde você tira essas coisas malucas? Nada entendo daquilo que você fala.
Menina: Não falo, penso. E você que me criou, devia me entender, presumo. Aliás, acho que estou chegando a uma conclusão quase que plausível: minha vida é uma vida dentro da sua, a única diferença é que eu sou você realmente, e você é apenas uma ilusão.
Eu: Você é muito nova para pensar nessas coisas. Acho você louca.
Menina: Agradeço ao senhor por me fazer imperfeita. Quanto a esse negócio de idade, acho tolice: mamãe disse que sou muito velha para amigos imaginários, então não entendo mais nada.
Eu: Voltemos à história, antes que você enlouqueça a todos.
Redijo tal conversa para que entendam o motivo que levou os pais da menina a lhe darem tal presente. Presente? Sim, havia esquecido: era aniversário.
            Aniversário que era de diversas vezes comemorado com um bolo e um singelo presente qualquer: desde sempre havia se contentado com tudo e dela emergia felicidade espontânea quase que contagiosa.
            E era dessa felicidade momentânea que ela deliciava-se ao correr dos segundos. Logo após receber os parabéns, olhou para a mesa e de lá pecaminosamente veio a tentação. Seus olhos devoravam em puro devaneio quando de repente o presente foi estendido em sua frente. Dessa vez achou que se tratava de um presente insólito. O que concluo é que nada passou de rápida e passageira curiosidade. O presente, envolto em fino tecido branco, parecia-lhe ousado como as cortinas de um teatro que se espera ansiosamente por se abrir. 
            Impetuosamente, tira bruscamente o tecido, e revela-se então uma gaiola branca e dentro dela, um pássaro.
            Trata-se de um pássaro pequeno, vadio e infeliz, cuja tristeza fora encoberta devido à beleza de sua prisão perpétua, uma rosa a ficar presa nela com um cartão de parabéns.
            Após agradecer aos pais, decide levar a pesada gaiola ao quintal e lá se senta ainda de pijama. O sol bate em seu rosto mas não se importa, ainda sente a vida bater em seu corpo com a mesma intensidade, nada era melhor.
            Estuda um pouco o espaço silenciosamente. Os pássaros continuam com suas melodias, as crianças com suas brincadeiras, e ela a ficar sentada olhando para o nada.
            Chega até a ser legal. Tinha gosto de sentir nada. Dentro dela um vazio inexplicável e nada fazia, nada falava. Encara às vezes o pássaro. Nada ele fazia também.
            Olha para o lado e estremece: Bárbara ao seu lado olhando para o mesmo nada. De repente ambas se olham. O silêncio é grande e angustiante, mas é bom. A menina odiava falar porque para fazê-lo era necessário pensar e pensar cansava. Preferia o silêncio monótono das coisas. O dia é bonito e quente e seus olhos gozam de prazer. O resto do corpo é frio e morto.
            Bárbara está inquieta mas nada diz. Percebe sua respiração abafada e nada diz também. Bárbara inclina a cabeça e analisa o pássaro vadio. É tão triste que a manhã chega a escurecer também. Não piava, não cantava, apenas servia de exposição. Era difícil respirar e viver. Que alguém o mate, por favor, antes que o sofrimento seja colossal.
            Pela graça de Deus nenhuma delas tinha o mesmo pensamento que eu. A menina demora a entender, mas olha para o pássaro também. Olham-se novamente. Silêncio. Pássaro. Olhar. Silêncio. Pássaro.
            O silêncio é vibrante e o mundo começa a gritar. É ensurdecedor e ambas começam a tremer de angústia. Bárbara implora qualquer coisa que a menina não entende. Quebraria o silêncio e então Bárbara poderia dizer o que tanto gostaria, mas era difícil e tudo cansava.
            Bárbara é obediente e não ousa passar por qualquer barreira que a leve ao mundo real antes da permissão de seu intermédio real-imaginário, que seria a menina. Suplica por qualquer palavra mas não sabe de onde tirar. É difícil pensar.
            É difícil e tem vontade de chorar, mas não o faz.
            É a hora da verdade e a verdade exige grande silêncio de meditação. A verdade é dita pelo pássaro mas este não diz nada. A verdade é expressa por telepatia ou qualquer outra coisa que não consigo raciocinar no momento. O tempo é meio pau-sa-do e quando se vê o cenário é assim: a menina olhando o pássaro, o pássaro, que há pouco ousara levantar sua cabeça imunda, erguendo seus olhos miúdos e temerosos para a menina. Bárbara é uma estátua imaginária colorida e nada diz nada sente nada faz.
            A menina hesita, encara Bárbara, que a ignora, queria acabar logo com aquilo, estava agonizando-a.
            Foi quando, escrupulosamente, abre-se a portinha da gaiola. O pássaro tem medo e se contorce um pouco. Olha a menina e ela o pega pela barriga e o joga para longe.
            Ele não entende. Está confuso, está no ar batendo as asas para não cair. Sim, tem medo mas voa. Nunca aprendera a voar mas voava. Tinha medo dessa liberdade dada gratuitamente da menina, tinha medo de viver porque nunca vivera antes e achava perigoso: desde sempre havia achado a gaiola o lugar seguro para os pássaros. Mas não tinha escolha agora. Voava para qualquer lugar e sentia o ar, sentia a vida, que logo percorria por todo o seu corpo magricelo e imundo, sentia-se vivo e feliz. Sentia um pouco de frio porque anoitecia, mas pouco se importava também. Às vezes aventurava-se voando de quando em vez com os olhos cerrados, aproveitar um pouco mais aquele momento. Pássaros não riem mas ele estava rindo e sorria de uma forma que tornava o mundo inteiro feliz. Uma vez até piou de tamanha felicidade. Era bom viver.
            A menina é chamada pela mãe. Daqui a pouco anoitece. Não tinha desculpa alguma para o “desaparecimento” do pássaro. Olha para o lado mas Bárbara não está lá. Levanta-se, pega a gaiola e entra em casa.
            Chega uma hora em que nada é mais que um devaneio e a realidade chega a ficar em segundo plano. Não sabia nada mas vivia, até estava gostando dessa ignorância pura, e era bom.
            A cantar, a rodopiar, a rir, a piar, a cantarolar, a dançar, a viver, a... BUM. BUM. O barulho é baixo mas o silêncio após é tão alto que chega a doer os ouvidos. Ele cai nas folhas amareladas e os olhos estão arregalados. É quando percebe-se que duas crianças brincavam com estilingue e um deles o acertou na cabeça. Percebem, veem o animal morto, e saem correndo. O pássaro caiu e agora o silêncio é tão grande que parece que já estamos no funeral. Sua respiração é abafada mas o silêncio grita e o interrompe. Está tonto. Sente o cheiro de terra úmida e sorri. Ao redor, ninguém vê nada. É um pássaro magro, fraco, vadio, quem repararia? Os olhos vão se cerrando. Ainda não escureceu. O crepúsculo se aproxima.
            Ele sorri pela última vez. Morre feliz.
            O dia é cândido e álacre lá fora.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Não sou mais criança.


Papai já me contou que a cegonha me trouxe até eles. Eu já uso os calçados da minha mãe, que repete mil vezes que eu ainda sou uma criança quando me vê desfilando lindamente. Mas eles não entendem que eu já sou adulta. Sei que os adultos se beijam quando se gostam. E que choram quando são magoados pelas pessoas que eles amam. Eu entendo completamente que meus pais precisam namorar. Eles sempre dizem isso quando eu não quero sair do quarto deles. Meu irmão mais velho riu quando eu disse que papai e mamãe estavam namorando, e me perguntou se eu sabia o que era aquilo. Oras, claro que sabia: eles se beijavam, né? Minha mãe sempre fechava meus olhos quando os casais da novela começavam a se beijar, e então ela gritava "CENSURA! CENSURA!". Eles pensam que eu não sei que censura é namoro. Eu até já beijei. Era o garoto da minha rua. Só não sei o que eles vêem de graça em beijar. Eca. Meninos são tão chatos, eles sempre atrapalhavam minhas brincadeiras com as minhas amigas. Só que pra provar como já sou adulta, namorei pela primeira vez. Viu, mãe, eu já posso usar suas maquiagens e suas roupas. Já sou bem grandinha. Sou quase do seu tamanho. Não fique brava quando eu colocar o seu salto, eu já cresci.

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